PrEP: tecnologia de prevenção

A telemedicina como ferramenta na oferta da PrEP durante a Covid-19 em um grande serviço de prevenção ao HIV no Rio de Janeiro

A pandemia de HIV/Aids continua afetando um grande número de indivíduos em todo o mundo. Em 2018, 37,9 milhões de pessoas viviam com HIV e 1,7 milhão foram recentemente infectadas. Nesse mesmo período, a América Latina acumulou 1,9 milhão de casos e 100 mil novas infecções por HIV. O Brasil responde por quase metade desses casos na região, com prevalência desproporcional de infecção entre populações-chave como gays, bissexuais e outros homens que fazem sexo com homens (HSH) (18%) e mulheres transgêneras que fazem sexo com homens (31%). Em 1996, o governo brasileiro instituiu a oferta gratuita de terapia antirretroviral combinada, com monitoramento virológico e imunológico para pacientes infectados com HIV.

Desde dezembro de 2017, a profilaxia pré-exposição oral e diária (PrEP), composta por emtricitabina e tenofovirdisoproxilfumarato (FTC/TDF), foi incluída nas diretrizes oficiais para populações com risco substancial de HIV por meio  do Sistema Único de Saúde (SUS). Um mês depois, o projeto de demonstração ImPrEP – estudo realizado no Brasil, México e Peru – foi iniciado com o objetivo de avaliar a segurança e a viabilidade da PrEP oral numa única consulta para HSH e mulheres trans com alto risco de infecção pelo HIV. O ImPrEP é coordenado pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz) e 3.779 participantes estão em acompanhamento em 14 locais no Brasil: São Paulo (5), Rio de Janeiro (3), Brasília, Florianópolis, Manaus, Porto Alegre, Recife e Salvador.

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou pela primeira vez o SARS‐CoV2 (também chamada de  Covid-19) como uma pandemia, após a doença ter se espalhado rapidamente pelo mundo desde os primeiros relatórios de Wuhan, China, em dezembro de 2019. O ônus da pandemia tende a evoluir, com o tempo, na direção das populações mais pobres devido a sistemas de saúde ineficazes e outros assuntos correlatos.

Respostas de saúde pública à Covid-19, como distanciamento social e protocolos de medidas de prevenção, são críticos para conter a disseminação do novo coronavírus, tendo sido adotadas no Brasil desde março de 2020 para evitar o colapso do sistema de saúde. No entanto, tais medidas importantes também podem afetar a continuidade regular dos serviços de prevenção e cuidados ao HIV, como o acesso reduzido ao teste de HIV, aassistência aos serviços de saúde, a iniciação e/ou manutenção do uso de antirretrovirais (ARVs) ou PrEP.

Consultas clínicas e a busca regular por ARVs nas farmácias dos serviços públicos também podem ser prejudicadas em virtude das restrições de tráfego e outrasbarreiras locais, impedindo às pessoas que vivem com HIV e às que estão em uso da PrEP acessarem os medicamentos necessários, o que reduz a possibilidade de adesão à prevenção e tratamento. Além disso, os indivíduos podem sentir medo ou desconforto em deixar suas residências devido ao risco de infecção pela Covid-19. Nesse sentido, torna-se urgente a adoção de estratégias adaptadas que minimizem interrupções no acesso e adesão aos ARVs.

O Conselho Federal de Medicina do Brasil define teleconsulta como um “controle remoto de consulta médica, mediada por tecnologias, com médico e paciente localizados em diferentes espaços geográficos”. Durante a pandemia, o Conselho reconheceu a possibilidade ética do uso da telemedicina e o Ministério da Saúde estendeu a dispensação de PrEP de 90 para 120 dias. Consequentemente, os serviços de saúde que oferecem a profilaxia foram obrigados a implementar uma nova estrutura para atender às demandas.


O Rio de Janeiro é a cidade com o segundo maior número de casos de Aids no Brasil, sendo o INI/Fiocruz o maior provedor de serviços de prevenção e assistência ao HIV, com cerca de 2 mil pessoas usando PrEP por meio do SUS e do estudo ImPrEP. Este artigo, conduzido por Brenda Hoagland e outros pesquisadores* do INI/Fiocruz e do Ministério da Saúde do Brasil, descreve os procedimentos de telemedicina implementados no INI/Fiocruz, no Rio de Janeiro, no contexto da pandemia de Covid-19, tendo sido publicado em maio de 2020 no Brazilian Journal of Infectious Diseases, da Sociedade Brasileira de Infectologia (https://doi.org/10.1016/j.bjid.2020.05.004).

Os procedimentos de telemedicina para a oferta de PrEP no INI/Fiocruz foram organizados em três teleconsultas diferentes: consulta telefônica para rastrear suspeita dos sintomas de Covid-19; teleconsulta inicial, na qual o participante deve comparecer ao serviço para teste de HIV e reabastecimento de medicamentos; e teleconsultas de acompanhamento, em que os participantesse dirigem ao serviço de saúde apenas para receberem nova leva de medicamentos.

Para todos os indivíduos inscritos no Programa PrEP do INI/Fiocruz e atualmente em uso da profilaxia, seja pelo SUS ou no projeto ImPrEP, uma teleconsulta inicial é agendada priorizando aqueles cujo estoque da profilaxia esteja terminando nos sete dias seguintes. No dia anterior ao teleatendimento inicial, é realizada uma consulta por telefone por meio de breve questionário para triagem dos participantes quanto a sintomas suspeitos de Covid-19. Aqueles que apresentam sintomas têm suas consultas presenciais canceladas, recebem informações específicas sobre a doença e são instruídos a usar preservativos de forma consistente em todas as relações sexuais durante o período em que estiverem sem medicamento para PrEP.


Ao chegar ao INI/Fiocruz para a teleconsulta inicial, os participantes são novamente avaliados em relação a sintomas da Covid-19 usando o mesmo questionário. Indivíduos com sintomas têm sua visita cancelada e recebem as mesmas instruções descritas para consulta por telefone. As pessoas sem sintomas realizam testes rápidos de HIV, também sendo avaliadas por telefone quanto à continuidade da PrEP, eventos adversos e se apresentam sinais e sintomas de infecção enquanto aguardam o resultado do teste de HIV.

Uma vez que o resultado do teste rápido está disponível e é negativo, os participantes recebem informação e uma prescrição em formato digital para suprimento de PrEP para 120 dias, além de dois kits de autoteste de HIV a serem retirados na farmácia. Nenhum aconselhamento pós-teste de HIV é fornecido, se solicitado, uma vez que todos que estão na consulta de telemedicina já se encontram em visitas trimestrais de acompanhamento da PrEP e estão cientes da importância dos resultados do teste rápido para HIV. Durante a visita ou entre as visitas, é disponibilizado o acesso a profissionais de saúde para esclarecer qualquer dúvida relacionada ao teste de HIV ou a PrEP.

Se o resultado do teste rápido de HIV for positivo, os indivíduos são submetidos a aconselhamento presencial e coleta de sangue para o teste de confirmação e outros adicionais, como contagem de CD4, carga viral, genotipagem do HIV e testes de segurança. Se a infecção pelo HIV for confirmada, o participante recebe uma receita médica para antirretrovirais em uma visitapresencial e nova avaliação médica por telefone dentro de 30 dias.

Após esse teleatendimento inicial, até que o distanciamento social seja liberado, todas as subseqüentes teleconsultas de acompanhamento são realizadas por telefone, incluindo instruções para o uso do autoteste de HIV e para o envio dos resultados por meio de fotografia digital. Os participantes vão ao serviço de saúde somente para retirar novos suprimentos de PrEP, reduzindo, assim, de forma significativa o tempo gasto no serviço e o contato social. Infelizmente, pelos altos custos envolvidos, não existem condições para a implantação de uma entrega em domicílio dos medicamentos, o que seria ideal durante o período de distanciamento social. Os usuários da PrEP também são instruídos a fazer contato telefônico entre as visitas em caso de sintomas de alguma infecção sexualmente transmissível ou de outros problemas de saúde relacionados à PrEP.

Desde a implementação dos procedimentos de telemedicina em 23 de março até maio de 2020, 331 participantes completaram o atendimento por telefone e as teleconsultas iniciais, com o tempo médio gasto no serviço reduzido em duas horas (de três para uma). Encontra-se em processo a coleta estruturada de dados sobre a aceitabilidade de todos os indivíduos que receberam a teleconsulta inicial. Até agora, a maioria relatou estar bastante satisfeita com os novos procedimentos.

Apesar dos resultados otimistas preliminares, a implementação da telemedicina em outros serviços de PrEP no Brasil ou em outros países de renda baixa e média pode enfrentar restrições. A primeira delas diz respeito aos telefones celulares: embora estejam amplamente disponíveis, esses países enfrentam enormes problemas sociais e disparidades que se tornam ainda mais profundas durante a pandemia da Covid-19, podendo impedir a disponibilidade de celulares e internet. Em segundo lugar, é preciso considerar a disponibilidade de autotestes de HIV e sua aceitabilidade. Em uma pesquisa na web, realizada em 2018 com mais de 11mil HSH brasileiros, 44% estavam dispostos a usar o autoteste de HIV, mas 87% consideraram importante o apoio e aconselhamento pós-teste. Nesse sentido, é preciso reforçar a necessidade de dar o devido suporte de treinamento às equipes para a realização das visitas virtuais. Por fim, a falta de regulamentos sobre telemedicina e autoteste para HIV pode inviabilizar a implementação desses procedimentos em países de renda baixa e média.

Pode-se concluir que a adoção de procedimentos de telemedicina em um grande serviço de PrEP está sendo eficaz para evitar a interrupção do uso da profilaxia e reduzir o tempo que os usuários gastam no serviço de saúde durante o distanciamento social recomendado em relação à Covid-19. Dados preliminares apontam alta aceitabilidade, indicando que os procedimentos de telemedicina podem sermantidos após a pandemia do novo coronavírus e deve ser considerado por outros serviços de PrEP.

*Autores do artigo: Brenda Hoagland, Thiago S. Torres, Daniel R. B. Bezerra, Kim Geraldo, Valdiléa G. Veloso, Beatriz Grinsztejn, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz, e Cristina Pimenta, do Ministério da Saúde

Agradecimento

A equipe gostaria de reconhecer o financiamento e apoio da Unitaid a este projeto. A Unitaid acelera o acesso a produtos inovadores para a saúde e estabelece as bases para sua expansão por países e parceiros. A Unitaid é uma parceria da OMS.